Os Princípios Cooperativistas no Século XXI: Uma Reflexão Para os Tempos Atuais
O cooperativismo, modelo que há quase dois séculos promove desenvolvimento econômico com justiça social, enfrenta hoje o desafio de manter-se relevante em um mundo profundamente transformado. Os sete princípios cooperativistas, inspirados na Declaração de Rochdale (1844) e revisados pela última vez em 1995 pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI), continuam sendo o norte que orienta cooperativas em todo o mundo. No entanto, o cenário global atual demanda uma reflexão profunda sobre sua aplicação e possível atualização.
O Mundo em Transformação
Nos últimos 30 anos, presenciamos mudanças fundamentais no cenário global. Em 1995, quando os princípios foram revisados pela última vez, o mundo era significativamente diferente. A internet comercial estava em seus primórdios, smartphones e redes sociais não existiam, e grandes marcos como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, a Agenda 2030, o Acordo de Paris (COP21) e a pauta ESG ainda não faziam parte do debate global.
O ambiente empresarial e social contemporâneo veio se transformando e apresentando cada vez mais desafios inéditos: emergência climática, conflitos geopolíticos, extremismos de pensamento, transformação digital, desigualdades crescentes e crises globais como a recente pandemia.
Embora, por óbvio, não me caiba determinar como os princípios cooperativistas deveriam ser hoje, as questões abordadas acima inevitavelmente me levam a refletir e pensar: como os princípios cooperativistas poderiam se adaptar para responder a estas novas demandas sem perder sua essência transformadora?
A Força dos Princípios Tradicionais
É fundamental ressaltar que qualquer reflexão sobre atualização deve partir de um ponto crucial: a essência dos princípios cooperativistas, centrada em valores como solidariedade, equidade e justiça, é justamente o que torna o movimento cooperativo único e relevante. Essa identidade cooperativa, construída ao longo de décadas, precisa ser preservada e fortalecida em qualquer processo de modernização. Não se trata de reinventar os princípios, mas sim de ampliar seu alcance para responder aos desafios contemporâneos.
Alguns princípios são inegavelmente atuais e continuam essenciais para o cooperativismo.
- Adesão Livre e Voluntária garante a inclusão ampla, combatendo discriminações e promovendo diversidade em um mundo que ainda luta contra desigualdades estruturais.
- Participação Econômica dos Membros reforça os valores de justiça econômica e controle democrático, essenciais no modelo cooperativista e ainda mais relevantes em uma era de concentração de riqueza.
- Educação, Formação e Informação são igualmente indispensáveis, agora com dimensões ampliadas pela educação digital e necessidade de alfabetização tecnológica e em inteligência artificial. Este princípio ganha nova importância na era da desinformação e notícias falsas.
- A intercooperação permanece como um pilar estratégico, especialmente com as novas oportunidades criadas pela globalização digital. Exemplos como cooperativas agrícolas globais e mercados comunitários, que utilizam plataformas digitais para compartilhar práticas sustentáveis e expandir mercados, ilustram como esses princípios podem se traduzir em impactos concretos.
O Que Poderia Mudar
Alguns princípios, entretanto, podem beneficiar-se de uma atualização que reflita as demandas contemporâneas:
- Gestão Democrática: Além da participação dos membros, deve-se enfatizar a transparência alinhando-se às demandas por práticas mais claras e éticas.
- Autonomia e Independência: O princípio pode ser fortalecido com a inclusão explícita da integridade como pilar, promovendo a ética em um cenário de desconfiança institucional crescente. Isso inclui práticas de compliance e governança que fortalecem a credibilidade das cooperativas.
- Interesse pela Comunidade: Este princípio merece uma expansão significativa para incorporar explicitamente a sustentabilidade ambiental, a resiliência social e o compromisso com os ODS. Contudo, a sustentabilidade deveria ser tratada como um valor transversal a todos os princípios, garantindo que todas as práticas cooperativas estejam alinhadas com um futuro sustentável. A experiência da pandemia também demonstrou a importância das cooperativas no fortalecimento da resiliência comunitária. Além disso, a urgência da emergência climática demanda que as cooperativas assumam papel de liderança em ações ambientais locais e globais, preparando suas comunidades para enfrentar as crises interconectadas do século XXI.
Uma proposta interessante seria instituir revisões regulares dos princípios cooperativistas, garantindo que eles continuem acompanhando os desafios globais e regionais, sem comprometer os valores fundamentais que definem o movimento
Uma Proposta Inovadora
O avanço tecnológico também traz desafios inéditos ao cooperativismo. Por isso, é possível imaginar a inclusão de um oitavo princípio: o uso responsável e ético da tecnologia. Este novo princípio abordaria questões cruciais como inclusão digital, privacidade de dados, ética na inovação, governança da inteligência artificial e sustentabilidade no uso de tecnologias, garantindo que o avanço na esfera digital permaneça alinhado aos valores cooperativos.
Uma visão de como os princípios poderiam ser apresentados hoje
O Movimento em Ação
É importante observar que a ACI, desde 2021, conduz um processo de revisão dos princípios cooperativistas através do Grupo Consultivo sobre Identidade Cooperativa (CIAG). Questões como sustentabilidade ambiental, inclusão digital e ética tecnológica estão no centro das discussões, refletindo os desafios atuais. Este processo participativo, que inclui consultas globais e debates, demonstra a atuação do movimento cooperativo e sua intenção de auto-renovação.
O movimento cooperativo também já demonstra, na prática, sua capacidade de adaptação às mudanças globais mesmo sem uma clara menção nos princípios. A integração de práticas ESG, a adoção de tecnologias digitais e uso de mecanismos de integridade e transparência adotados por cooperativas acompanhadas por órgãos reguladores são evidências dessa evolução. A atualização dos princípios seria um reconhecimento formal dessa transformação, fortalecendo o cooperativismo como um modelo econômico resiliente e alinhado aos desafios contemporâneos.
Apesar da relevância da atualização dos princípios, é importante reconhecer os desafios envolvidos, como resistências internas no movimento, a necessidade de respeitar as diversidades regionais e a complexidade de equilibrar valores históricos com demandas contemporâneas. Esse processo precisa ser conduzido de forma participativa e inclusiva.
Conclusão
A atualização dos princípios cooperativistas não significa abandonar seus valores fundamentais, mas sim fortalecer sua aplicação no contexto atual. O desafio é preservar a essência transformadora do cooperativismo enquanto se adapta às novas realidades globais. Como movimento que sempre se destacou por sua capacidade de combinar valores humanistas com eficiência econômica, o cooperativismo tem todas as condições de continuar sendo um modelo de referência para um desenvolvimento mais justo e sustentável.
O momento exige que cada cooperativista reflita: como podemos contribuir para que os princípios cooperativistas continuem sendo motores de transformação no mundo atual? Como podemos honrar o legado dos fundadores do movimento enquanto construímos um cooperativismo adequado aos desafios do século XXI?